Naquele tempo Caculé não tinha água, quando eu falo água, não me refiro à água encanada, cisternas, chafariz. Não, eu me refiro somente a vida que não era dada e permitida, (até que chegassem as enchentes que tornavam a água corrente, intragável, para gente e bicho). Pois de quando em quando ainda chovia, ( de novembro a janeiro alguma coisa até março, depois só com Deus)
Vivíamos para beber, lavar roupa e cozinhar água do rio do Antônio, mas água não vinha da correnteza do rio, (este quase não existia). Mas das cacimbas, cavadas nas areia do leito do rio, até que minasse uma água quase filtrada, cristalina e podem perguntar aos sobreviventes das cacimbas, gostosas saudáveis. Sim, porque até hoje, passados mais de 50 anos, eu não me lembro de qualquer homem, mulher, criança ou animais daquele tempo que tivessem xistosoma, ameba ou outros vermes, que hoje em dia são quase animais de criação dos brasileiros.
Neste árido cenário, eu vejo, Francina, branca, pequena, magra, quase esquelética, sempre com o nariz marcado pelo “torrado” (fumo em pó, que ela cheirava, guardava em um chifrezinho e que minha avó sempre roubava uma pitada).
Rendo homenagens a Francina, porque em parte eu devo a ela a minha sobrevivência, se não sou hoje, gordo, rosado, vendendo saúde, pelo menos como diz uma amiga de uma geração posterior, “ ainda dá um caldinho”, aos sessenta anos.
(Francina tinha uma força descomunal, é uma resistência absurda por um preço insignificante, pois as famílias viviam na pobreza ou até mesmo em troca de um café com pão), ela transportava incontáveis vezes água para as várias famílias da Rua Pinguela, para as casas de lado e do outro da rua. Recordo a imagem de infância, brincando nos quintais descalço da casa de minha avó, uma ladeira de inclinação razoável, o barranco e sempre observava a figura de Francina descendo ou subindo equilibrando uma lata de água na cabeça, em sua prece silenciosa.
Eram dezenas de viagens, para os Fróes, para Dona Sinhazinha, os Pereira, os Fagundes, o Aquino, os Cavalcanti, onde vejo que dezenas de crianças que hoje, adultos e sem nenhuma recordação sequer das dificuldades de água, que passávamos. Pois os potes sempre estavam cheios nas nossas casas graças à Francina.
Francina era o rádio, a fofoca e a informação de segurança. As famílias mantinham uma certa discrição entre uma casa e outra, mas, Francina, entrava em todas, como uma repórter, e captava atentamente o clima ambiental, as preocupações, as dores, as alegrias. Eu me lembro dela informando, “chegou visita na casa de fulano”, seu fulano tá com uma febre danada”. Minha avó, esperta, mandava encomenda para as amigas, “ ô Francina, quando você for botar água na casa de Drª. Cicrana, entregue este bilhete. Segurança total Francina não sabia ler.
As enchentes do rio era um perigo, não que a chuva não fosse bem vinda, os animais esperavam com mais ansiedade do que os humanos. Pois mesmo quando secava o rio, Francina cavava mais fundo e sempre trazia água. O preço da lata nunca subia na escassez, quem sua era Francina, pois as casas todas tinham um ladeirão danado até o rio. Aos primeiros sinais de mais água corrente, mais plantas passando pelo rio, Francina dava logo o alarme, “ Vai encher, enche logo os potes”. Era época de captar, guardar, conservar a água, para beber, nos potes, para lavar, num tonel ou tanque ou outra vasilha. Quando a chuva caia, Francina não trabalhava, ficava pelos cantos das casas encolhida, cheirando “torrado”, parecendo que só os olhos falavam, e de água ela entendia, após a primeira pancada de chuva, os telhados eram limpos das poeiras, dos cocôs dos pássaros, aí Francina, entrava em ação, inventando jeitos de captar água, para conservação, ela ajudava na aquisição de potes, sabia de sobra à cerâmica mais adequada. Foi um representante de uma profissão que desapareceu, o aguadeiro. Em outras cidades a água chegava em lombo do burro. Para mim chegou no lombo de Francina. Benza a Deus.
Sumí de Caculé, só voltei muitos anos depois, já grande, fui reconhecido por Francina, que aproveitou para me passar um carão, “Eu protegi as cacimbas de aves, bois e cavalo, e você vinha com seus primos sujar as cacimbas dos outros”. Não me lembrava, mas se foi verdade, merecia também uns cascudos.
Francina, não trabalhava mais, não por falta de força, vontade ou resistência, é porque o progresso eliminou algumas profissões do passado. A água agora chegava às casas, encanada, vindo do Comocoxico. Soube que ela chegou a se aposentar pelo Funrual, formalmente. Ótimo.
Francina é ainda lembrança na minha vida, me deixa mais humilde, lembrar dela, pois ninguém vive sozinho, para cada vida, neste cenário divino, tem as vezes centenas de médicos, lixeiros, professores, aguadeiros, que de uma forma ou de outra serviam para dar continuidade á consciência da vida, tanto dos amigos quanto dos inimigos, que circulavam em torno de nos, visíveis ou invisíveis. Seguindo o grande plano traçado, não por nós, mas por Deus. Sonho de vez em quando com Francina, subindo pacientemente o barranco com uma lata de água na cabeça. Penso nela, agora lá em cima, velando para que as nuvens fiquem sempre carregadas. Pra despencar no sertão vermelho do Caculé.
Por: Altamiro Castilho